FILMES NO CINEMA

A Fantástica Fábrica de Chocolate chegava ao Brasil há 50 anos mudando vidas

Publicado em 25/09/21 00:00

50 anos pode ser uma grande quantidade de tempo ou nem tanto tempo assim, dependendo de como você encarar. Para um filme, uma série, ou coisa que o valha, manter-se relevante por meio século é uma conquista rara. Para uma vida humana, durar cinco décadas ou menos em pleno século XXI é pouco, trágico. É essa idade que a chegada do clássico cult A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971) aos cinemas brasileiros completou nesta sexta (24). E é esse número, mais nove, o tempo que meu pai, o maior fã que conheci do filme dirigido por Mel Stuart, habitou a face da Terra.

Depois de 40 anos trabalhando muito, o coração do velho não aguentou menos que dois de aposentadoria; resolveu parar também, em 2020. Escondido no peito endurecido de filho mais velho entre três, que encontrou no trabalho policial uma fuga da pobreza, esse coração calejado via na paixão pelos filmes uma janela para se mostrar mais sensível. E era compartilhando desse amor que eu podia conhecer mais do meu pai. Era assim com o filme sobre Charlie Bucket e Willy Wonka.

Foi nas muitas reprises na TV aberta que o meu velho e milhares de outras crianças brasileiras da época conheceram e se apaixonaram pela história do pobre garoto de coração de ouro, que viu a sorte sinalizar a ele, com um sorriso de chocolate, uma mudança de vida fantástica. No mergulho mágico que Charlie (Peter Ostrum) dá no império de delícias de Willy Wonka (Gene Wilder), toda uma geração pôde viajar em "pura imaginação", dando asas aos seus maiores sonhos. Mais do que fazer sonhar com uma sala em que tudo é doce e comestível, o filme segue relevante pois permitiu a muita gente acreditar que o amanhã seria melhor, contanto que se acreditasse o bastante nele.

Inspirado no livro homônimo de Roald Dahl, A Fantástica Fábrica de Chocolate começou a mudar a história das páginas já no título original: trocou Charlie and the Chocolate Factory por Willy Wonka and the Chocolate Factory, só para conseguir dinheiro de uma linha licenciada de chocolates, que lucraria com o filme. O escritor nunca aprovou a produção, não só por isso, mas também por mudanças no desfecho e principalmente pela escalação de Wilder como Wonka. Dahl queria o humorista Spike Milligan – uma grande bobagem.

Wilder, um dos maiores comediantes que Hollywood conheceu (Jovem Frankenstein e Banzé no Oeste que o digam), enxergou no moralismo da história de Dahl, que incluía crianças mal-criadas sendo punidas das mais variadas (cômicas, mas bizarras) maneiras, tons sádicos e soturnos. Assim, decidiu interpretar Wonka de forma ambígua: afável e amedrontadora, mas nunca perdendo a ternura. Não é à toa que a infame cena do barco, na qual um Wilder de olhos arregalados assusta crianças e adultos a bordo de uma fragata em um rio de chocolate inundada por imagens perturbadoras, é considerada uma das mais assutadoras da história do cinema infantil. Também não é à toa que um sorriso-surpresa do chocolateiro, na cena final, seja como um abraço apertado: é uma atuação que desperta em qualquer criança sensações similares às que provocam nossos pais, do anseio pela aprovação ao temor que convida o respeito.

Se fidelidade fosse o principal critério para laurear um clárriso, o remake de 2005 dirigido por Tim Burton deveria ser lembrado com mais carinho que o filme de 1971, mas até quem gosta da versão com Johnny Depp admite que não é o caso para a maioria das pessoas. Há mais do que nostalgia na aura insuperável do A Fantástica Fábrica de Chocolate original: o desbunde estético da adaptação mais recente é também um distanciamento da realidade do público, convidando o conceito de fantasia desde muito antes da entrada nas indústrias Wonka e, consequentemente, minando o poder de surpreender, envolver e cativar do filme.

Divulgação

O original, por outro lado, se aproximava da realidade de quem o via, a quebrando apenas para apresentar o mundo fantástico do chocolateiro. Logo de cara, Charlie era uma criança como qualquer outra: inocente, mas presa em um mundo frio, injusto e brutalmente reconhecível. Seus quatro avós dividindo uma cama não eram uma referência ao expressionismo alemão, mas uma visão deprimente da desigualdade. E seu brilho no olhar ao receber um trocado do fumo do avô para gastar em chocolate não era diferente daquele de qualquer criança que cresceu com pouco, ao ganhar algo que não esperava.

Era esse mesmo brilho que se refletia nos olhos do meu pai sempre que assistíamos juntos a A Fantástica Fábrica de Chocolate. Às vezes, entretanto, ele dava lugar às lágrimas, que com o velho só apareciam em duas situações: quando víamos grandes filmes ou quando ele se lembrava da infância. De forma direta, essa segunda modalidade de pranto eu só testemunhei uma vez, quando lembrou dos anos dividindo uma única cama com seus dois irmãos até a adolescência; as palavras, sufocadas por fortes puxadas de ar, saindo espremidas em meio a um esforço vão para segurar a emoção. Foi só com o tempo que eu fui entender: era uma versão mais intensa do choro contido que eu via escapar sempre ele ouvia Gene Wilder, como Willy Wonka, cantar. Mas era o mesmo choro.

Na viagem mágica de Charlie à fantástica fábrica, meu pai reencontrava sentimentos de toda uma vida: a inocência da infância, a saudade de tempos mais simples, a dor de tempor piores, a esperança por tempos melhores. No compartilhar desse filme comigo, ele me passava um pouco de tudo isso, que era na verdade parte da história dele mesmo, antes que eu pudesse experimentar essas sensações na minha própria história. Hoje, já com uma bagagem que inclui a dolorosa despedida dele próprio, reencontrar Charlie, Wonka e a "pura imaginação", eu posso enfim entender melhor aquele brilho, aquelas lágimas e aquele pai.

Fonte: Omelete // Eduardo Pereira

Veja também