O Agente Secreto tem noite de gala no Festival de Toronto contra anistia
Publicado em 08/09/25 18:00
Já passava das 19h quando a King Street, rua em Toronto onde ficam os principais cinemas do festival que marca a cidade e o calendário do segundo semestre. No meio dela, um protesto a favor da Palestina e contra Israel acontecia antes da exibição do vencedor do Grande Prêmio do Júri de Veneza, The Voice of Hind Rajab. O sol ainda brilhava — obrigado, horário de verão do hemisfério norte — e alguns metros dali, uma legião de brasileiros e cinéfilos se reunia para a première de O Agente Secreto, no Royal Alexandra Theatre.
A data de estreia do filme não poderia ser mais marcante: 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil. E se manifestações tomaram o país na América do Sul — algumas com bandeiras dos EUA tremulando, vejam só —, na América do Norte a entrada do diretor Kleber Mendonça Filho ao palco da sala, antes do filme ser exibido, já ganhou coros de “sem anistia” e “viva o cinema nacional”. Logo após, Emilie Lesclaux, produtora do filme, e o astro Wagner Moura também foram chamados. A data nacional não passou batida pelo diretor.
“Não poderia me esquecer de que hoje é Dia da Independência no Brasil, porque o filme se passa em 1977 e eu me lembro de quando eu era criança, lá nos anos 70, toda a ideia de democracia, sob a ditadura, era meio que uma piada”, disse o diretor. “Meus pais me contaram isso, e eu aprendi ainda nos anos 70. Então a ditadura ruiu e, nos anos 90 e 2000, tivemos a democracia de volta. E, como geralmente acontece, nós tomamos isso como certo e achamos que a democracia é normal e muito estável. Esse não é realmente o caso do que aconteceu com o Brasil há cerca de 10 anos. Então agora, é o Dia da Independência de 2025, e estamos em um pensamento democrático mais estável, prestes a mandar um homem horrível de volta para a cadeia.”
A declaração do diretor, mesmo sem citar nomes, fala diretamente sobre o processo de julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, que envolve tentativa de golpe e planos contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro Alexandre de Moraes. “Quando você faz um filme, escreve um livro, toca uma música, isso é inevitavelmente político. Então, eu simplesmente não poderia deixar essa informação passar sem, à nossa maneira discreta, celebrar o 7 de setembro hoje em Toronto, apresentando a vocês O Agente Secreto”, completou o diretor durante a apresentação.
Stanley Kubrick e memória do passado
Após a exibição do filme e longos aplausos nos créditos, especialmente para Wagner Moura e Tânia Mara, pela incrível Sebastiana, diretor e astro voltaram ao palco para uma sessão de perguntas e respostas. A premiada atuação de Moura, claro, foi um dos primeiros assuntos abordados. Kleber Mendonça Filho foi perguntado se havia escrito o personagem pensando no ator, que não atuava em português havia 12 anos.
“Eu escrevi este filme especificamente de uma forma que me permitisse trabalhar com Wagner Moura. Estávamos tentando encontrar o roteiro certo há algum tempo e eu sentei e escrevi. Ele foi feito sob medida para o Wagner, considerando a pessoa que eu conhecia dele, os filmes que vi e seu trabalho no palco e na televisão”, contou o diretor.
“Este é o papel em que conseguimos trabalhar juntos e estou muito feliz por estar aqui no palco esta noite com este cara. Ontem fizemos muita divulgação do filme aqui em Toronto e uma entrevista começou de forma muito interessante. O cara me perguntou: qual era o plano B para este filme? E eu tive que dizer que não havia plano B”, disse Kleber, interrompido pelas risadas na plateia. Wagner brincou com o diretor dizendo que não acreditava. “Wagner estava desconfiado, mas ele era o plano A e o plano A.”
A relação dos dois levou o ator a contar um fato curioso: ele nunca havia assistido Barry Lyndon, de Stanley Kubrick. “Eu achei que seria demitido na hora. Ele exibiu o filme para mim e ficava me olhando enquanto eu assistia. Eu só respondia: ‘É ótimo! É um ótimo filme!’”, disse, arrancando novas risadas do público.
Depois de falar mais sobre o processo de produção, Kleber destacou que O Agente Secreto é um filme em que há muito amor envolvido. “As pessoas se reúnem, ajudam umas às outras e fazem trocas. E acho que a ideia de O Agente Secretoera que eu fizesse um thriller cheio de suspense, enigmático, com medo e violência, mas também só consegui imaginá-lo com amor e carinho”, afirmou. “Acho que discutir um momento difícil em qualquer país, em qualquer sociedade, pode ser muito difícil porque geralmente envolve violência. E eu sempre soube que o filme seria violento em algum momento. Mas eu realmente não gosto da abordagem de destruição e de algo implacavelmente sombrio.”
O diretor voltou então a falar sobre a relação da história do filme com a ditadura militar no Brasil e os crimes cometidos contra a sociedade. O processo de anistia dos militares e daqueles que lutavam contra o regime, na visão de Kleber, traumatizou a sociedade brasileira, o significado de memória e o que é seguir em frente. “‘Não vamos falar sobre isso, é muito desagradável’ acabou virando uma coisa muito brasileira”, exemplificou o diretor, que voltou a citar a situação atual. “Novamente tentam um processo de anistia para os crimes cometidos pela extrema direita: tentativa de golpe, plano de matar o presidente, o vice, um juiz da Suprema Corte… e agora deveríamos perdoá-los de novo? Francamente, isso não vai acontecer”, declarou.
Kleber encerrou a noite dizendo que não tem e nunca teria as ferramentas para dizer o que um filme deveria significar, mas que O Agente Secreto é sobre essa auto infligida amnésia, que ele considera parte da história, e destacou que ficaria feliz em saber que todos ali teriam uma memória para o futuro. “É a contribuição que ganho por fazer filmes. Se tivermos sorte, ele será guardado e daqui 54 anos significará algo, quem sabe?”, brincou o diretor, acompanhado por seu astro com um discurso mais “esperançoso”.
“Eu estou muito orgulhoso das instituições brasileiras neste momento. O Brasil está se tornando um exemplo do que uma democracia deveria ser e isso é muito importante nesse 7 de setembro”, encerrou Wagner Moura, seguido pelos aplausos e gritos dos presentes.
Fonte: Omelete // Alexandre Almeida