Depois da Caçada tropeça em sua própria história de #MeToo
Publicado em 04/10/25 07:00
Basta ver alguns filmes recentes de Luca Guadagnino para notar como o diretor deriva prazer das mais complicadas relações pessoais abordadas neles. Seja algo pulsante, como o que vem do triângulo amoroso de Rivais, saudoso, como o desejo não realizado de Queer, ou trágico, como o romance condenado de Até os Ossos – o cineasta italiano adora ver seus personagens presos numa rede complexa de sentimentos e intenções. Com isto em mente, faz todo o sentido que ele se sinta atraído por Depois da Caçada.
O roteiro de Nora Garrett se apresenta como uma discussão sobre #MeToo, políticas de gênero e cancelamento dentro do ambiente acadêmico de universidades particulares e caras dos EUA, como Yale. A proposta rapidamente foi descrita como “Tár, mas em faculdades.” A comparação ganha mais força diante da atuação (e caracterização) fria de Julia Roberts como Alma, professora prestes a conseguir a titularidade, assim como seu colega/rival/paquera Hank (Andrew Garfield). Mas os paralelos ao filme de Todd Field e Cate Blanchett param por aí, especialmente em termos de qualidade. Para uma história que começa com seus personagens discutindo os mesmíssimos temas que serão abordados nos longos 140 minutos a seguir, Depois da Caçada não tem curiosidade sobre o que está em tela, e se satisfaz em ensaiar, mas não praticar, o drama inerente à premissa.
Este drama começa quando, depois de uma festa na casa de Alma e Fred (Michael Stuhlbarg, um deleite incessante de comédia seca, num filme que precisa desesperadamente dela) onde tutores e tutorados estão se reunindo para conversar sobre assuntos típicos de um ambiente privilegiado como esse. Há, hoje, uma encenação de simpatia com mulheres e minorias? Ser um homem branco, hétero e cis é uma desvantagem no campo atual? Será que cancelaríamos filósofos como Nietzsche se eles vivessem nos tempos modernos?
Em típico modo Guadagnino, essas discussões, que ganham mais força quando envolvem Maggie (Ayo Edebiri), tutorada de Alma prestes a apresentar sua tese de PhD, e Hank, são filmadas como um verdadeiro labirinto de egos e ciúme. Espelhos são uma imagem recorrente em Depois da Caçada, evocando tanto a sugestão de que cada um ali tem duas caras quanto uma noção narcisista de paixão pelo próprio reflexo. É uma abertura e tanto para o filme, especialmente porque Guadagnino se deixa dar uma risada sarcástica do que está acontecendo, em especial através de Fred e seu visível (mas sempre contido) desgosto pelos colegas da esposa – já citei Stuhlbarg, mas preciso repetir: ele é quem melhor entende o tom de humor ácido e afiado que o filme deveria abraçar, talvez até mais que Guadagnino e Garrett, e sua ausência na reta final é muito sentida.
Quando o jantar termina, Hank acompanha Maggie – uma lésbica sem nenhum interesse nos flertes do homem, diferente de outras alunas – até sua casa. No dia seguinte, depois de ficar a manhã toda longe das classes, a jovem aparece – animalesca, molhada na chuva, assombrada – na porta de sua mentora. Hank, ela diz, cruzou a linha. Ela precisa de ajuda. Alma, para enorme frustração de alguém que claramente a idealiza, hesita em oferecê-la. Eu não vi nada, diz a professora. Daí em diante, a bola de neve de acusações e defesas sai rolando até virar uma avalanche que envolverá a carreira de algumas pessoas presentes naquela noite.
O problema é que enquanto essa onda de choque se espalha por Yale, Depois da Caçada se satisfaz em estudá-la como os próprios membros da academia fariam; há, aqui e ali, um ou outro diálogo inspirado sobre a situação, mas – talvez com a desculpa de que a intenção do filme é “gerar discussões” – isso nunca é abordado de uma maneira mais psicologicamente honesta. Personagens estão sempre prontos para debater os temas, mas quando isso tudo deixa de ser teoria, Guadagnino e Garrett não têm interesse na prática. Os dilemas interpessoais que surgem mais parecem um melodrama (medicamentos controlados, casos extraconjugais, etc) do que frutos da situação complexa que envolve Alma, Hank e Maggie.
Para Guadagnino, isso é letal. Se a abertura de Depois da Caçada ainda se empresta aos instintos de diversão perversa do diretor, que por tabela nos envolve um fascínio mórbido por figuras questionáveis, quando entramos neste território mais escorregadio, Guadagnino precisa guardar suas facas. Seja por não saber como encarar o material, ou, francamente, por não acreditar que as ideias discutidas no roteiro não são tão apetitosas quanto, digamos, ver Julia Roberts bem-vestida e olhando com tesão para Andrew Garfield, também bem-vestido.
A trinca de atores principais é competente, especialmente Garfield, que abraça sem reservas o carisma perturbado de alguém que se acha o centro do universo. Sem avançar na psique dos protagonistas, porém, o texto de Depois da Caçada impede que essas atuações nos transportem para dentro desse jogo de cadeiras perigoso. Estamos sempre assistindo ao filme como espectadores distantes. O problema, porém, é que o diretor parece estar conosco. Claro, sua câmera – como um truque barato na última cena deixa bem claro – está ali, mas sua mente já começou a divagar. Assistindo a Depois da Caçada, é difícil culpá-lo.
Fonte: Omelete // Guilherme Jacobs