FILMES NO CINEMA

"Amazing Grace", o filme proibido de Aretha Franklin que levou 47 anos para ser lançado

Publicado em 22/02/19 06:00

Em 1972, Aretha Franklin estava no topo da popularidade. Ela, que começou a carreira cantando em coros da igreja do pai, um pastor batista, voltou às raízes e gravou um álbum que se tornou o campeão de vendas da música gospel: "Amazing Grace". Um registro de dois shows com o mesmo repertório realizado em uma igreja deveria se tornar um filme, e de fato virou um. Mas que só foi concluído agora, quase 50 anos após as filmagens.

"Amazing Grace", o filme (que foi exibido no Festival de Berlim), é um material extraordinário, que mostra por que Aretha foi considerada uma das maiores vozes da música norte-americana. O público presente na igreja, de decoração simples, com um quê de cafona, reagia com grande entusiasmo a suas amostras de afinação.

Entre os convidados, duas figuras bastante ilustres: os Stones Mick Jagger e Charlie Watts. O então célebre reverendo Cleveland, também músico, introduzia Aretha. E o pai da cantora, em certo ponto, sobe ao púlpito e homenageia a filha. 

O material bruto deste filme, que nunca havia sido finalizado, permaneceu esquecido por décadas, como uma joia trancafiada em um cofre.

Por que jamais chegou a público?

"Amazing Grace" tem um histórico de problemas. A ideia surgiu em uma época em que os documentários musicais faziam grande sucesso. Em 1970 foram lançados, por exemplo, "Woodstock", de Michael Wadleigh, sobre o mítico concerto que marcou a geração hippie; e "Let It Be", de Michael Lindsay-Hogg, com os bastidores das gravações do último álbum a ser lançado pelos Beatles. Para coordenar as filmagens do show de Aretha, foi contratado o diretor Sydney Pollack, um dos destaques da Hollywood da época, por filmes como "A Noite dos Desesperados" (1969).

As imagens foram registradas com êxito, mas na finalização, a equipe se deparou com um problema técnico sério: por despreparo, não era possível sincronizar as imagens com o áudio. Isso, juntamente à fama de Aretha como pessoa "difícil", acabaram por arquivar indeterminadamente o projeto.

Os problemas no caminho

"Há 28 anos trabalhei com [o produtor de Aretha] Jerry Wexler, que um dia me perguntou qual era meu álbum favorito. Eu disse: 'Amazing Grace'. E ele respondeu: 'Filmamos isso!'", contou Alan Elliott, diretor do filme, em conversa com jornalistas em Berlim.

Surpreso com a existência do material, Elliott ficou fascinado com a ideia de, um dia, poder ver uma versão finalizada do filme. Como isso nunca aconteceu, anos mais tarde voltou a contatar Wexler e Pollack para retomarem o projeto. Descobriu que seria possível utilizar o som captado por um outro gravador naquelas noites e refazer a sincronização.

Chegou a fazer planos com Pollack, mas problemas de saúde impediram que o cineasta voltasse ao filme, e ele morreu pouco tempo depois. Sem muita confiança em seu próprio potencial, Elliott entrou em contato com o diretor de videoclipes Michel Gondry, que logo se interessou em fazer parte do projeto. Mas também não deu em nada. Elliot teria que concluir sozinho.

Trailer do filme "Amazing Grace" (em inglês)

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Aretha, uma estrela de cinema

A maior barreira ainda estava por vir: a própria Aretha. A cantora nunca quis discutir em pormenores a finalização do filme com Elliott e se recusou a colaborar. Só depois de ela morrer, em agosto de 2018, é que finalmente o filme pôde ser concluído. "Aretha Franklin deveria ter se tornado uma estrela de cinema. Naquela época, Barbra Streisand fez 'Funny Girl - A Garota Genial' [1968]. E um pouco depois, Diana Ross fez 'O Ocaso de uma Estrela' [1972]. Aretha queria que esse também fosse seu novo passo na carreira", diz Elliott. 

"Amazing Grace" seria o primeiro passo da Aretha cantora para a estrela de cinema. Mas com os problemas do filme, o plano foi frustrado, e Aretha perdeu o timing: jamais conseguiria seguir a carreira de atriz. "Ela era uma pessoa muito precisa. Mas provavelmente ficou chateada que não teve a chance de ter o seu momento de Barbra Streisand ou de Diana Ross", acredita Elliott.

Aretha Franklin em cena de "Amazing Grace" Imagem: Reprodução

"Ela não queria lidar diretamente comigo. Só depois fui descobrir que ela estava com câncer no pâncreas. Então, de repente, o material deixou de ser simplesmente um filme comum e passou a lidar diretamente com o tema religioso, da mortalidade", ele conta. "No filme, você vê o pai dela falar. A última canção do show é a primeira que ela gravou", diz o cineasta, que depois soube que Aretha adorava o material, mas que, nos últimos anos, via ali um conteúdo muito forte e pessoal para lidar em seus últimos momentos de vida.

O resultado final

Com a morte de Aretha Franklin, Elliott voltou ao projeto. Quis evitar a estrutura clichê do documentário no formato "clipe musical + depoimentos". Uma de suas poucas discussões que teve com Pollack foi justamente por causa de pontos de vistas diferentes sobre a estrutura. "Ele queria ter depoimentos das pessoas, anos depois, sobre o show. E eu achava que não", diz. "Eu resolvi manter na edição todas as partes em que o reverendo Cleveland falava, porque de certa forma ele era um narrador, a estrela-guia da narrativa."

A escolha foi feliz: de fato, o reverendo traz ao filme um aspecto de mestre-de-cerimônias que introduz o espectador àquele espetáculo, à história de Aretha e ao que estava acontecendo naquela igreja, nas duas noites. Desde o momento em que Aretha entra em cena, com uma vestido branco, o filme ganha uma aura especial. Ela parece tensa, mas assim que abre a boca para cantar, se solta e ganha o público. Já na segunda canção, suava em bicas, a maquiagem escorria, mas isso não a impediu de um dos momentos mais memoráveis de sua carreira.

O ponto alto é provavelmente a versão da música que dá nome ao filme. Mas o número final, com "Never Grow Old", também é histórico. Mesmo quem não é muito ligado à música gospel há de se emocionar ao ver uma grande artista, muito emocionada, fazendo o que sabia de melhor: cantar sua devoção.

"Amazing Grace" ainda não tem previsão de estreia no Brasil.

Fonte: UOL Cinemas // Bruno Ghetti

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