FILMES NO CINEMA

20 anos depois, como 'Matrix' ainda é um dos filmes mais atuais do cinema?

Publicado em 09/12/21 05:00

Mais de 20 anos depois de chegar aos cinemas, "Matrix" ainda é considerado um filme à frente do seu tempo. Para além dos memes sobre "falha na Matrix" e a popularização do termo "déjà vu", o filme criado pelas irmãs Wachowski ficou consagrado justamente por levantar debates muito pertinentes — e fazer isso de forma acessível, em uma obra muito popular.

Mas, hoje, qual é a relevância de Matrix?

Antes da popularização da internet por banda larga e da explosão das redes sociais, "Matrix" já estava trabalhando conceitos como Realidade ou Simulação, identidades virtuais e dependência tecnológica.

Com o advento dos smartphones que, para grande parte da população, tornaram-se sinônimo de atividades que vão do trabalho ao lazer, essa relação quase simbiótica está ainda mais atual.

Por isso, a ideia de as pessoas se perderem em realidades simuladas, em certos níveis, faz mais sentido em 2021 do que fazia em 1999 — sobretudo considerando o impacto de redes sociais como Instagram, TikTok e Twitter em nossas rotinas e no tempo médio que usuários costumam passar navegando por elas.

É claro que a questão é mais profunda do que isso. As Wachowski se inspiraram no livro "Simulacros & Simulação", do filósofo francês Jean Baudrillard, para criar o conceito da vida dentro e fora da Matrix.

A teoria de Baudrillard discute, em síntese, a relação entre realidade (quem somos), símbolos (o que nos representa) e sociedade (como nos apresentamos). As Wachowski pegaram as teorias e as transforaram em realidade fantasiosa na saga, e esse é um dos motivos pelos quais essa relação entre mundo real e mundo virtual é tão pertinente.

No entanto, o próprio Baudrillard não gostou muito da ideia. Para ele, filmes como "O Show de Truman" (1998) e "Cidade dos Sonhos" (2001) fizeram um trabalho melhor. Em entrevista concedida à revista francesa "Le Nouvel Observateur", em 2012, ele disse que as suas visões haviam sido interpretadas de forma equivocada.

Cartaz de "Matrix: Resurrections"
Imagem: Divulgação

O valor de 'Matrix' é, principalmente, o de ser uma síntese de tudo isso. Mas a narrativa é muito crua e não verdadeiramente evoca o problema. Os personagens ou estão na matriz, isto é, no sistema digitalizado de coisas, ou estão radicalmente fora dele, tal como em Sião, a cidade da resistência. Mas seria interessante mostrar o que acontece quando esses dois mundos colidem.

Segundo ele, o filme acaba fazendo parte do problema.

"O que nós inventamos a fim de dar conta desse mal-estar é um real simulado, que doravante suplantará o real como a sua solução final, um universo virtual do qual tudo o que é perigoso e negativo foi expulso. E 'Matrix' é, inegavelmente, parte disso. Tudo que pertence à ordem do sonho, utopia e ilusão é dado como uma forma concreta, é realizado. Estamos na transparência sem cortes. 'Matrix' é certamente o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria sido capaz de produzir."

Narrativa trans e corpos políticos

Personagem Switch inicialmente seria uma figura masculina na realidade e uma feminina dentro da Matrix
Imagem: Reprodução/Warner Bros.

Ainda assim, a importância da obra se reflete em outros campos. Lilly Wachowski confirmou uma teoria que circulava entre grupos de fãs há algum tempo: de que a história era uma metáfora sobre a experiência de pessoas trans.

"Quando se fala sobre transformação, especialmente no mundo da ficção científica, que é só sobre imaginação, construção de universos e a ideia de algo quase impossível se tornar possível, acho que é por isso que [Matrix] fala com [pessoas trans]", explicou Lilly em entrevista para o Netflix Film Club. "E eu sou grata por poder dar uma esperança para ajudar as pessoas em suas jornadas."

Ela disse ainda que a alegoria sobre corpos transgênero estava lá desde o início, mas demorou a ser vista.

Era a intenção original, mas o mundo corporativo não estava pronto. Quando você faz filmes, eles são uma forma de arte, e qualquer arte que você coloca no universo tem um processo de desprendimento. Elas entram no discurso público.

Ainda assim, os discursos do filme em 1999 são de uma época diferente das vidas de Lilly e Lana, antes de as duas se manifestarem publicamente como mulheres trans.

"Sense8", série criada pelas irmãs Wachowski para a Netflix, conta a história de um grupo de pessoas com uma conexão psíquica
Imagem: Divulgação

O próprio entendimento de ambas sobre corpos políticos se transformou muito nas últimas décadas. Parte disso é visível na trama da série "Sense8", da Netflix, que transcende a conexão física dos protagonistas através da conexão mental que compartilham. Essa transformação deve informar o que veremos em "Matrix Resurrections".

Apropriação do discurso

Uma questão que entrou em pauta nos últimos anos é a apropriação do discurso do filme por grupos conservadores e de extrema direita, que cooptaram a simbologia da pílula azul (que mantém a pessoa dentro da Matrix) e da pílula vermelha (que liberta) em debates políticos e sexistas, embora de forma simplista.

Quando Elon Musk e Ivanka Trump escreveram no Twitter sobre "tomarem a pílula vermelha", por exemplo, numa clara alusão política de Republicanos contra Democratas, receberam uma resposta bem objetiva de Lilly.

Referências visuais e estéticas

Para além de conceitos filosóficos e literários, a coreografia e os efeitos visuais das cenas de luta de "Matrix" foram copiados e replicados quase à exaustão em filmes e seriados do início dos anos 2000.

Estamos falando de um período anterior ao Universo Cinematográfico Marvel, e a estética da obra das irmãs Wachowski influenciou outras produções emblemáticas, dos X-Men à trilogia do Cavaleiro das Trevas, além de filmes que ganharam um status cult com o passar dos anos — como "A Origem" (2010), "Kill Bill"(2003) e "Watchmen - O Filme" (2009).

A própria narrativa transmidiática foi algo que se expandiu após "Matrix". A trilogia de filmes é continuada em jogos, livros e revistas em quadrinhos, e esse mesmo movimento foi usado por muitas obras da TV depois. A série "Lost" usou e abusou deste recurso com jogos de realidade alternada, miniepisódios e histórias paralelas, por exemplo.

Fonte: UOL Cinemas // Laysa Zanetti

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