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Pênis decepado: "Lorena" resgata crime dos anos 90 e questiona quem é a vítima do caso

Publicado em 16/02/19 05:00

A partir da noite de 23 de junho de 1993, a cidade americana de Manassas, na Virginia, se tornou foco de uma cobertura inédita da mídia americana. Lorena Bobbitt pegou uma faca na cozinha enquanto seu marido, John Wayne Bobbitt, dormia, voltou para o quarto e decepou seu pênis. Em seguida, ela fugiu do local em seu carro e atirou o membro -- posteriormente reimplantado cirurgicamente -- em um gramado. A inusitada história atraiu a atenção massiva da TV, jornais e revistas.

John Wayne Bobbitt durante entrevista em 1994 Imagem: Mitchell Gerber/Corbis/VCG via Getty Images

A alegação de Lorena, que afirmou repetir abusos e ter sido estuprada diversas vezes por John, no entanto, não teve grande repercussão nos tribunais e muito menos na mídia. Dividida em quatro episódios, a série documental "Lorena", disponível na Amazon Prime Video, resgata este caso de grande repercussão, mas joga luz sobre a história por outra perspectiva.

Dirigida por Joshua Rofé e produção executiva de Jordan Peele (diretor de "Corra"), o documentário reflete sobre os acontecimentos de 1993 e como o crime foi explorado exaustivamente pela mídia, enquanto o lado de Lorena Bobbitt foi constantemente diminuído, tanto pelas autoridades quanto pela imprensa.

As denúncias de abuso sexual e psicológico ganham força somente com o desenrolar do caso. "Lorena" é um acerto quando mostra como a narrativa da mídia pode ser desequilibrada e, neste caso, alavancada pelo machismo em um caso onde o ato de decepar um órgão genital soava muito mais danoso ao homem do que os anos de abuso que a mulher enfrentou.

O documentário cria duas linhas temporais para mostrar a trajetória dos dois. A leitura de uma "mulher surtada" criada em 1993 é desconstruída facilmente nos capítulos quando as acusações recaem de maneira mais enfática sobre o comportamento violento de John. Ele, por sua vez, colabora sozinho para abandonar o papel de vítima ao tentar lucrar com sua situação. Nos anos seguintes ao caso, ele esteve presente no noticiário frequentemente com diferentes tentativas de monetizar o caso.

John Wayne Bobbitt divulga seu filme pornô com as atrizes Veronica Brazil, Tiffany Lords e Letha Weapons Imagem: David Rentas/New York Post Archives /(c) NYP Holdings, Inc. via Getty Images

John fez dois filmes pornô --em um deles ("Frankenpenis") chegou a operar novamente seu pênis para aumentar o seu tamanho--, montou uma banda e também atuou como ministro de casamentos. Mas seu retorno ao noticiário se deu mesmo por meio de novos casos de violência doméstica com as mulheres com quem se relacionava.

O caso dos Bobbitt se tornou inédito não só para a imprensa, mas a mídia como um todo. Em vez de ser tratado com a profundidade que pede um caso onde existe uma grave troca de agressões entre marido e mulher, o documentário mostra que o crime virou assunto em programas de humor e texto de stand-up para comediantes, inclusive Robin Williams. Na cidade, os moradores aproveitaram a agitação local para fazer camisetas e faturar em cima do acontecimento.

A todo momento "Lorena" nos força a repensar a abordagem de um fato acontecido em 1993. Por que agiram daquela maneira? Como seria se o caso acontecesse hoje?

Movimentos como #MeToo colocaram o holofote sobre um tema delicado e pouco debatido em relação aos abusos sofridos pelas mulheres, mas este é um caminho ainda longe de seu final. Assim que foi anunciado, "Lorena" recebeu resenhas negativas -- mesmo sem ter sido lançado -- e uma chuva de dislikes em seu trailer no YouTube. Boa parte dos comentários critica a Amazon por "defender uma criminosa que decepou o pênis do marido".

Então mesmo que exista uma corrente progressista, ainda vemos uma onda em sentido contrário, similar aos acontecimentos de 1993. 
Os quatro episódios de "Lorena" são um convite didático e envolvente para uma reflexão profunda do nosso passado e também do presente.

Fonte: UOL Cinemas // Osmar Portilho

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