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Ellen DeGeneres peitou a homofobia; agora, faz piada com ela na Netflix

Publicado em 19/12/18 05:00

Ellen DeGeneres é muito boa no seu trabalho -- e, como ela nos lembra várias vezes em seu especial "Bem Relacionada", da Netflix, esta competência lhe trouxe fama, fortuna e prêmios. O que faz com que estes constantes lembretes não soem pedantes é o fato que, até pouco tempo atrás, ser boa em seu trabalho não bastava para que Ellen fosse aceita pelo público.

A comediante conta os básicos de sua história no especial, que marca o seu retorno ao stand-up, formato que a consagrou nos anos 1980, após quinze anos de hiato. Em 1997, ela era a estrela universalmente adorada da sitcom "Ellen", da emissora ABC, quando decidiu se assumir lésbica, em entrevista à "TIME" -- e, "por alguns minutos, houve muita aclamação", como relembra a própria DeGeneres.

No ano seguinte, a sitcom em questão havia sido cancelada em meio a uma crise de audiência que muitos atribuem à relutância da emissora em promovê-la. Muitas filiais da ABC ao redor dos EUA se recusaram a exibir "Ellen" após o capítulo batizado de "The Puppy Episode", em que a personagem da comediante também se assumia gay para a sua terapeuta, interpretada por Oprah Winfrey.

Mesmo anos depois, quando estava tentando vender seu talk show diurno para grandes emissoras, DeGeneres teve que ouvir de um executivo que "ninguém quer assistir a uma lésbica durante a tarde". "Bom, ninguém estava-me assistindo durante a noite. Qual é o horário ideal para uma lésbica?", pergunta DeGeneres no especial, zombando do momento com a perspectiva de quem, anos depois, comanda um dos programas mais bem-sucedidos da TV americana.

Em "Bem Relacionada", DeGeneres tenta negociar com o público que conquistou em quinze anos de talk-show. A persona que apresenta no palco está no meio do caminho entre a encenação do programa, que a fez ficar conhecida como "a garota da gentileza" (nas palavras da própria), e a realidade de um ser humano que foi rejeitado e machucado, mas triunfou pela pura força de vontade e talento.

Em stand-up, cumplicidade entre comediante e público é tudo. Quando DeGeneres faz o que é esperado dela, é sempre com o brilho nos olhos e o meio-sorriso no rosto de quem sabe o que está fazendo, e até onde quer ceder.

Por causa da consciência que tem de si mesma e da imagem que construiu, ela consegue lamentar que os fãs sempre a pedem para dançar quando a encontram e, minutos depois, se soltar no palco ao som de "Back That Ass Up", do Juvenile.

O equilíbrio entre essas "duas Ellen's" é o elemento mais complexo que a comediante tinha que acertar em seu retorno aos palcos, combinando a necessária abrasividade do stand-up com o ícone que ela se tornou nos anos longe dele. É óbvio durante "Bem Relacionada" que DeGeneres pensou muito nisso enquanto concebia suas piadas -- e o trabalho, como de costume, é muito bem feito.

Ellen DeGeneres dança no especial "Bem Relacionada", da Netflix Imagem: Reprodução/YouTube

A outra parte que parece essencial em "Bem Relacionada" é que, através dele, DeGeneres toma controle mais uma vez de sua história. Muito mais do que consegue fazer em seu talk show, a comediante discute sua trajetória de forma aberta e joga sobre ela uma luz diferente.

A trama cheia de altos e baixos da carreira de DeGeneres foi apropriada muitas vezes desde aquela sua entrevista para a "TIME", em 1997. Primeiro, como um aviso sombrio para outros artistas que pensavam em sair do armário, e depois como um símbolo de triunfo e aceitação que transformou Ellen em um ícone LGBTQ+.

Nas mãos da própria, no entanto, esta é simplesmente uma história de liberdade -- e porque não seria? Ao exibir de forma exagerada sua casa gigantesca, suas passagens de primeira classe, sua vida doméstica com a mulher, Portia De Rossi, e seu prazer (e brutal competência) em escrever e entregar piadas novamente neste ambiente de sinergia entre comediante e público que é o stand-up, DeGeneres celebra sua própria liberdade e felicidade.

Assim, a comediante responde a pergunta que a atormenta desde o começo do especial: Será que, após tantos dólares e tantos Emmys, ela ainda consegue fazer graça com coisas que reconheceremos da nossa própria vida? Na sua alegria desinibida de ser e viver quem ela é, Ellen nunca foi tão "gente como a gente".

Fonte: UOL Cinemas // Caio Coletti

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